CHAMA-SE «A história de Ao Ge» e está a ser realizado pelo famoso, se bem que ainda jovem, cineasta chinês Zhang Chin. Trata-se de uma adaptação cinematográfica da obra «As alucinações de Ao Ge», da autoria da escritora e também sub-chefe da divisão de suplementos literários do jornal Ou Mun, Lio Chi Heng, e está a ser promovido como mais uma iniciativa para assinalar os dez anos da criação da Região Administrativa Especial de Macau.
O filme, de acordo com o seu realizador, pretende retratar o sentimento dos macaenses durante a transferência de soberania de Macau para a República Popular da China, mas não vai contar com a participação de nenhum dos «filhos da terra».
A polémica começa mesmo aqui. Como pode o filme retratar o sentimento dos macaenses, se estes, segundo referiram as associações ligadas à comunidade, nem sequer foram contactados para participarem no levantamento que antecede qualquer projecto desta natureza? E ainda para mais, com a agravante, como foi veiculado por um jornal local, de o filme nem sequer contar com actores da comunidade que se pretende retratar!
Os papéis principais são representados por um actor de origem hispânica e outro britânico. O papel feminino principal foi confiado a uma actriz chinesa! Um actor macaense foi aos «castings» e foi dispensado porque, de acordo com o realizador, não era suficientemente profissional e não tinha fisionomia «euro-asiática!»
Se um macaense não é a personificação da mistura entre a cultura asiática e europeia (entenda-se, de cariz português, neste caso), – pergunto-me, – quem o será?!
Estamos habituados, ao longo dos anos, a ver iniciativas no campo da promoção das singularidades de Macau, que tinham tudo para ser bem sucedidas, mas que se revelaram um autêntico fracasso.
Quando se vêem projectos como este, – e que são pagos pelos nossos impostos, – servirem os interesses de apenas alguns, é caso para nos sentirmos ofendidos e manifestarmos a nossa indignação.
Dinheiro mal gasto
Este filme é pago – note-se – pelas autoridades de Macau, de Portugal e da China, pelo que entendo deveria servir para dar visibilidade à cultura de Macau e às suas ligações com a tradição portuguesa.
Se consideram que se podem usar actores de Hong Kong para dar visibilidade à cultura singular de Macau, podemos muito bem dizer que nem vale a pena insistir em querermos ser diferentes. Mais vale deixarmos os nossos vizinhos fazer o que bem entendem com aquilo que é nosso.
Em conversa com um ilustre membro da comunidade local, em torno deste tema, referiu-me que, no caso da escolha dos actores, seria o mesmo que ir-mos fazer um filme sobre a cultura mongol das estepes da Ásia Central, servindo-se de actores de Macau!
Por muita boa vontade que exista, há aspectos básicos que têm de ser escrupulosamente seguidos. Primeiro, e antes de mais, tem que se entender a cultura singular dos macaenses. Ora isso, só mesmo sendo «da terra» se pode perceber. E mais: para se considerar fidedigno deveriam servir-se de pessoas que conhecem e vivem essa mesma cultura.
A um jornal local, o actor macaense José Pedruco afirmava que não foi escolhido para o filme porque, segundo o realizador, não seria suficientemente profissional, assim como também não reunia as características de um euro-asiático!
Estamos em condições de avançar que, além de José Pedruco, outro membro da comunidade dos filhos da terra foi também abordado para o mesmo fim, mas viu-se obrigado a declinar o convite para protagonista por estar demasiado ocupado com os seus compromissos académicos. As tentativas de encontrar um «macaense» ficaram-se por aqui.
Ao que parece, os produtores contactaram também os «Dóci Papiaçam di Macau» para participarem nas filmagens, mas o seu mentor, Miguel de Senna Fernandes, viu-se obrigado a renunciar devido a estarem, presentemente, demasiado ocupados com a preparação do compromisso que têm anualmente com o Festival de Artes de Macau.
Como me foi explicado, os produtores pretendiam filmar uma cena do protagonista a assistir a uma peça dos «Dóci», mas mesmo isso parece que não vai ser possível porque o contacto foi feito muito em cima da hora, não dando tempo suficiente para se preparem minimamente.