Macau desfigurado
A FRENTE marítima de Macau vai mudar radicalmente nos próximos anos. O projecto de consulta está em andamento e, apesar de ter sido divulgado, tanto localmente como no exterior, parece ser completamente desconhecido. Em Macau poucas pessoas estão a par dos planos do Governo nesta área e as acções de divulgação têm sido pouco esclarecedoras.
Dividido em zonas A, B, C e D, o plano engloba intervenções tanto na frente de Macau, como na da ilha da Taipa, alterando toda a zona ribeirinha entre as três pontes.
Dos pontos referidos, o que certamente terá mais impacto é o da zona A, aquela que já está a ser construída, de raiz, junto à zona da Rotunda da Pérola, perto da fronteira das Portas do Cerco. É também nessa zona que vai ficar localizada a entrada em Macau da Mega-ponte Hong Kong-Macau-Zhuhai.
Para proceder a tais aterros, o Executivo da Praia Grande pediu autorização ao Governo Central para construir entre a Ponte da Amizade e Gongbei. Só estas duas «ilhas» vão fazer o território crescer exponencialmente (cerca de 25%).
Estes projectos, em conjunto com outras intervenções de carácter paisagístico urbano, foram apresentados em Novembro de 2010 durante uma sessão aberta ao público e, de tempos a tempos, vão sendo anunciados mais avanços. No entanto, como em muitos outros assuntos que se registam em Macau, pouca ou nenhuma atenção suscitou na população ou nas regiões vizinhas.
Nos documentos públicos é claro que a face marítima de Macau irá sofrer enormes alterações, logo a começar pelo lado direito do território, para quem chega por via marítima. Os aterros nessa zona chegam quase à zona do canal de navegação dos barcos vindos de Hong Kong.
Como todos os projectos apresentados pelos Governos, este também foi elaborado para que dê a imagem de que traz imenso valor acrescentado. Prometem corredores verdes, interligações entre zonas novas e velhas, valorização do património histórico, etc.
Começamos a ficar pouco crédulos naquilo que nos prometem. Os exemplos de maus tratos do património são mais que muitos. Quem não se lembra, por exemplo, de ver o Farol da Guia de todos os ângulos de Macau? Nos últimos cinco anos foram capazes de reduzir a sua visibilidade a apenas dois locais: o Tap Seac e a Praça Flor de Lótus.
Macau sempre foi uma cidade marítima e que sempre viveu virada para a água; contudo, as intervenções e políticas dos últimos anos viraram as costas por completo a esta herança. Actualmente, a RAEM não tem qualquer tipo de estratégia que privilegie o seu passado histórico-marítimo nem o seu potencial neste sector.
As pescas são quase inexistentes e o sector da náutica de lazer é apenas uma sombra daquilo que era antes de 1999. Basta olhar para o Porto Interior e ver em que estado está. Admiro-me como é que ainda por ali se navega e como é que as taínhas ainda sobrevivem!
Em Macau há apenas uma marina, apesar dos constantes apelos do sector para que outras possam ser construídas, pois só assim podem apostar no desenvolvimento de um mercado de valor acrescentado que pode trazer mais turistas de qualidade ao território.
Há um exemplo flagrante de investimento privado que acabou por ser um elefante branco. A Doca dos Pescadores, com efeito, tem também uma «marina»; no entanto, o empresário promotor do empreendimento, sabendo da impossibilidade de obter a licença de utilização da mesma, devido a situar-se dentro da área de navegação dos «jetfoils», decidiu deixá-la por terminar. Um local nobre ribeirinho deixado ao abandono, apenas porque o Governo não clarifica o que vai fazer, de uma vez por todas, com o Terminal Marítimo do Porto Exterior.
Quem ande mais atento lembra-se certamente de que o grupo de Stanley Ho tinha apresentado, há alguns anos, um enorme projecto chamado «Oceanus», constituído por um hotel que iria ocupar parte da zona onde se encontrava o antigo centro comercial «New Yaohan», cruzando a Avenida da Amizade para o local onde se encontrava o antigo casino «Palace» e mesmo a zona do terminal dos «jetfoils». Tal projecto teve de ser metido na gaveta, já que não houve clarificação acerca da posição do Governo relativamente ao Terminal Marítimo do Porto Exterior. O «Oceanus» nasceu mas com outra fisionomia…
Com as intervenções anunciadas na orla marítima de Macau teme-se que venha a alterar-se por completo a linha de visão do território. Apesar do Governo ter promovido vários encontros para discutir este assunto, os especialistas do território defendem que uma intervenção desta envergadura não pode ser feita de ânimo leve e que deve ser criada uma equipa multidisciplinar para abordar, no plano técnico, todos os pontos.
De acordo com engenheiros e arquitectos, perguntar à população em geral o que pensa e deseja para os novos aterros não é a solução ideal, porque o comum dos cidadãos muito dificilmente estará preparado para analisar este tipo de informação.
Como em muitos outros assuntos, o Governo não deu qualquer atenção às críticas do sector e avançou como sempre tinha planeado.
Esperamos, pois, que uma intervenção humana desta envergadura na fisionomia marítima de Macau, em conjunto com o impacto da mega-ponte, não traga mais influências negativas para a qualidade de vida das pessoas da RAEM.