Desapareceu um amigo
RECENTEMENTE tive a triste notícia da morte de um amigo. Uma pessoa que, por motivos puramente comerciais, tive a oportunidade de conhecer e que, ao longo dos anos, se transformou naquela personagem que está sempre presente. Que não se imagina noutro local que não seja o seu espaço de trabalho, sempre com um sorriso na cara, um aperto de mão firme e palavras de boas vindas. Bem disposto, afável e, acima de tudo, sempre muito sincero. Tão sincero, que muitas vezes prejudicou o seu negócio, só porque considerava que o produto que queríamos comprar não combinava connosco. A minha esposa nunca irá esquecer que ele não a deixou comprar nada em jade, porque o jade é para «malta velha»! São negociantes destes que deixam saudades e que passam a barreira da amizade.
Esta pessoa adoeceu e faleceu em menos de uma semana. Uma doença fulminante,que lhe roubou a vida com pouco mais de meio século de existência.
Sempre que nos encontrávamos, fazia questão de falar em Português, língua que dominava com algum desembaraço e da qual tinha orgulho, porque nunca a tinha estudado. Disso me deu a saber várias vezes, quando outros clientes do interior da China lhe perguntavam se também falava Português, porque o ouviam a linguarejar comigo num dialecto esquisito!
Nunca procurou distinções; conheceu tudo quanto era gente importante na administração portuguesa, mas nunca se deu a convites para copos-d’água ou recepções; no entanto, guardava-os todos religiosamente. Mantinha-se no seu cantinho, como me disse alguma vezes, porque não gostava de ser visto nas fotografias e não se sentia confortável com muita gente à sua volta.
Morreu como viveu, discreto, e sem que ninguém desse por isso.
Sinto pena que a comunidade portuguesa não lhe tenha prestado homenagem. Merecia-a, quanto mais não fosse, por ser um acérrimo defensor do legado português de Macau e da continuidade da língua e da cultura portuguesa nestas paragens. A sua loja era disso exemplo: ourivesaria típica chinesa, onde as denominações em Português nunca desapareceram. Os preços eram todos negociados e, – isso eu posso testemunhar, – mais baratos para quem falasse com ele em Português! E para os amigos de longa data, claro!
O negócio nos últimos anos não estava famoso, mas, mesmo assim, nunca ponderou vender o local a uma das grandes cadeias de venda de ouro, como acontece diariamente em Macau. Confidenciou-me várias vezes que fazia o seu dia-a-dia normalmente e que não precisava de ganhar muito dinheiro. Desde que o negócio desse para pagar à empregada que o ajudava e para as compras da esposa, seria suficiente. Era de vida pacata e não dado a luxos, apesar da sua aparência denotar um requinte que dava a entender tratar-se de uma pessoa de classe social mais elevada e que vivia bem. Bem vestido, bem apresentado, de maneiras finas e bem educado. De fino trato, como se costumava dizer.
Há várias semanas que não me cruzava com ele junto da igreja de São Domingos de manhã, onde os nossos rumos se separavam, eu em direcção ao Largo do Senado e ele a caminho da sua loja, no final da Almeida Ribeiro. Quase diariamente nos cumprimentávamos com um «bom dia!» em Português. Se bem que algumas vezes, para sua irritação, eu lhe dizia «bom dia!» em Chinês, ao que ele sorria e disparava com um bem audível «bom dia!».
Da última vez que nos sentámos e conversámos foi em Setembro de 2011, quando me desloquei à sua loja para comprar um par de brincos para oferecer como prenda de aniversário à minha sogra. A conversa, como sempre, demorou-se e prolongou-se entre chá e assuntos do dia-a-dia, sobre os quais ele gostava sempre de saber o ponto de vista dos residentes portugueses. É que, apesar de falar Português, não lia jornais nem via televisão ou ouvia rádio em Português. Dizia-me que os jornais escreviam em letras muito pequenas e que a rádio e a televisão não o faziam sentir à vontade, porque a pessoa não estava ali ao pé de si; era uma comunicação muito fria.
Era um homem de relacionamentos pessoais e que gostava de confraternizar com quem visitava o seu negócio. Os clientes mais antigos eram amigos de longa data, com os quais se esquecia do lado monetário e se perdia em conversas que se prolongavam por horas.
Certo dia, – penso que tinha ido mandar polir as alianças de casamento, – cheguei e estava o senhor Lok numa amena cavaqueira com um «cliente». Pediu-me para esperar um momento e que já me atendia. Passados uns cinco minutos, o «cliente» levantou-se e foi-se embora, tendo o senhor Lok transferido a sua atenção para mim, não se importando com os outros clientes que iam entrando e saindo da sua loja. Os outros podiam ser atendidos pela empregada ou pela esposa, dizia-me quando lhe indicava que eu poderia esperar enquanto ele atendia outros clientes, visto não ter pressa. A meio da conversa, depois de lhe ter explicado o que queria fazer, entrou, de rompante, o «cliente» que tinha sido atendido antes de mim. O homem mais parecia um fantasma, de tão branco se apresentava. Desdobrou-se em pedidos de desculpas, pois tinha-se esquecido de pagar o que o tinha trazido à loja. Com tanta conversa, tinha metido ao bolso os objectos e deixado o local sem pagar. O senhor Lok apressou-se a apaziguar a preocupação do cliente (amigo de longa data e filho de colega de bancos de escola, explicou-me mais tarde). Ele sabia muito bem que ele não se tinha ido embora sem pagar com intenção. Se não pagasse hoje, pagava da próxima vez, pois entre amigos há sempre confiança. De salientar que o «cliente» tinha feito uma compra superior a 50 mil patacas!
O senhor Lok era proprietário da Ourivesaria Cheong Heng, no número 422 da Avenida Almeida Ribeiro. Amigo da cultura portuguesa de alma e coração, morreu sem que nada fosse dito, nem que a sua obra tenha sido reconhecida. Morreu como sempre viveu, calmo e sem dar nas vistas.
Paz à sua alma! Em mim e na minha família deixou uma marca indelével e um sentimento de dor de quem perde um amigo.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo comentário.
Volte sempre.